terça-feira, 20 de agosto de 2024

Nise da Silveira: arte, filosofia e literatura

Nise da Silveira foi uma figura extraordinária, cuja vida e trabalho deixaram um legado profundo na interseção entre psiquiatria, arte, filosofia e literatura. Nascida em 1905, em Maceió, Nise foi uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Brasil, e sua abordagem revolucionária ao tratamento de pessoas com transtornos mentais marcou uma virada na psiquiatria, especialmente em relação ao uso de arte como terapia. Nise via a arte como uma linguagem essencial da alma humana. Para ela, a expressão artística era uma forma de revelar o inconsciente e um caminho para a cura. Ela rejeitou os tratamentos tradicionais, como eletrochoque e lobotomia, e em vez disso, criou o ateliê de pintura no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, onde os pacientes podiam expressar seus sentimentos e pensamentos por meio da arte. As obras produzidas pelos pacientes não eram vistas como meros produtos de mentes perturbadas, mas como manifestações genuínas da psique humana, cheias de significado e valor. Nise acreditava que a arte tinha o poder de curar e transformar, sendo uma forma de comunicação profunda entre o mundo interno e externo.

Nise tinha uma forte conexão com a filosofia, especialmente com o pensamento de Baruch Spinoza. Nise da Silveira escreveu um livro intitulado Cartas a Spinoza, uma coleção de sete cartas nas quais ela se dirige ao filósofo holandês Baruch Spinoza como seu mestre, refletindo sobre a importância de sua obra científica e filosófica como fundamento para o trabalho que desenvolvia no hospital psiquiátrico. Spinoza entende o afeto, derivado do verbo "afetar", como aquilo que nos move, nos toca e mexe com nossa alma. Esses afetos podem ter qualquer natureza e são únicos em cada indivíduo, existindo no espaço da nossa subjetividade. 

O que Nise e Spinoza nos ensinam é que muitas vezes a percepção dos nossos afetos é negligenciada, já que vivemos em um mundo que supervaloriza a racionalidade. Será que tudo o que me é ofertado, tudo o que consumo, de bens a relações, me afeta positivamente? Ou será que, de alguma forma, até mesmo meus afetos estão condicionados e me vejo obrigado a sentir? Compreender isso exige tempo e um olhar profundo para dentro de nós mesmos, mas parece ser um exercício essencial, pois é a capacidade de afetar e ser afetado que nos torna verdadeiramente humanos.

Nise era uma leitora ávida e tinha uma profunda apreciação pela literatura. 

Ela via os livros como portais para novas ideias, culturas e maneiras de ver o mundo. Sua biblioteca pessoal era vasta e variada, refletindo seu interesse por diferentes áreas do conhecimento. Além da filosofia, Nise tinha um forte apreço pela literatura clássica e moderna, usando-a como fonte de inspiração e reflexão em seu trabalho. Ela acreditava que os livros podiam abrir caminhos para o entendimento das complexidades humanas, tanto na saúde mental quanto na vida em geral.

A biblioteca de Nise da Silveira ocupava a sala e os dois quartos do apartamento acima daquele em que ela vivia. A cuidadosa seleção das centenas de livros contrastava com a simplicidade das estantes, feitas de tábuas de madeira apoiadas sobre tijolos. Entre os volumes, havia obras de literatura, artes plásticas e filosofia, além de recortes de jornais, catálogos de exposições, as obras completas de Antonin Artaud, Machado de Assis, Freud e C. G. Jung. Também estavam presentes livros de medicina, epistemologia, religião e até uma prateleira dedicada exclusivamente a livros sobre gatos. Dentre todas as prateleiras dessa rica biblioteca, a mais valiosa era aquela que abrigava livros sobre diversas correntes teóricas, focadas nos estudos sobre a expressão plástica, especialmente de pessoas em tratamento psiquiátrico. Para facilitar o trabalho de futuros pesquisadores, Nise da Silveira criou uma lista comentada desses livros, a qual intitulou: “Pequeno fichário relativo a obras sobre expressão plástica de psicóticos e algumas dicas para o benedito”.

Nise da Silveira foi, portanto, uma verdadeira intelectual, que uniu arte, filosofia e literatura em sua prática profissional e em sua vida pessoal, sempre buscando formas mais humanas e compreensivas de entender e tratar o sofrimento humano. 

Exposição Nise da Silveira: A Revolução pelo Afeto. Tour 360

A exposição apresenta aproximadamente 90 obras de clientes do Museu de Imagens do Inconsciente, incluindo trabalhos de Carlos Pertuis, Adelina Gomes, Emygdio de Barros e Fernando Diniz, além de peças de Lygia Clark e Zé Carlos Garcia. Também são exibidas fotografias de Alice Brill, Rogério Reis e Rafael Bqueer, vídeos de Leon Hirszman e Tiago Sant’Ana, e aquarelas e fotografias de Carlos Vergara. Com curadoria do Estúdio M’Baraká, a mostra destaca a dimensão inovadora e criativa de Nise da Silveira, uma das mais renomadas cientistas do Brasil, reconhecida mundialmente.

A exposição conta com tour virtual: https://nisenoccbb.ccbb.com.br/tours-virtuais/


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